terça-feira, 21 de janeiro de 2014

As cuecas da Sara - 39


Pequenininha, a Sara, teria uns dois anos, quando um dia fui com ela a uma loja ao lado do prédio onde moravam, porque ela queria qualquer coisa e a mãe estava ocupada, pelo que me pediu para a levar.

 

Enquanto eu tratava do assunto vi chegar ao pé dela um garotinho, sensivelmente da mesma idade. Ficou frente a frente com ela, encheu o peito de ar e apontava para o desenho da sua T-shirt, que ele não se cansava de exibir, tentando fazer inveja à Sara. Punha as mãozinhas com os dedos apontados aos vários pontos mais interessantes da t-shirt, ao mesmo tempo que bamboleava o corpo, numa ligeira dança para a direita e para a esquerda.

 

A Sara pequenita, com uma boneca debaixo do braço, olhava para o garoto aparentemente indiferente. Não liguei e continuei à procura do que tinha ido comprar. Até que, de repente, ouço a avó do garoto ralhar com ele, dizendo-lhe para estar quieto. Olhando, vejo então o garoto que continuava exibindo, cheio de vaidade, a sua t-shirt e a Sara, que tinha acabado de vestir umas cuequinhas novas com uns bonecos muito fofos, com o vestido levantado até às orelhas, barriga empinada para fora, rodando o corpo de um lado para o outro e apontando para os bonecos sobre o seu pipi. 

 

Pronto, não resistiu, e afinal não estava em desvantagem. Também tinha algo novo e bem giro, por sinal. Mas acima de tudo, muito adequado para mostrar.



segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Jacaré/crocodilo - 38


Quekuto é uma das crianças da comunidade Guineense, a quem a organização "Coração Sem Fronteiras" dá apoio escolar, na freguesia do Prior Velho.

 

Quekuto é um turbilhão de emoções, todas ao mesmo tempo. No ano passado eu não consegui trabalhar com ele, nem um pouco. Não nos entendemos de jeito nenhum. Ele entrava e saía, saía e entrava e voltava a entrar para imediatamente sair. Ignorava tudo e todos, sempre a refilar, só fazendo o que ele muito bem queria, com aquele ar reguila que todos lhe conhecem. E no ano passado, a solicitação das crianças era tão grande e as nossas dificuldades tantas que eu deixei-o ir na onda dele, sem fazer grandes esforços, porque também não era possível fazer mais, e milagres muito menos. Pensava eu.

 

Este ano, o Quekuto continua a ser o mesmo reguila, irrequieto, um desassossego completo, mas... há nele, nas mesmas proporções, um lado doce, carinhoso, sedento por ser mais e melhor, que no ano passado não me foi revelado. Este ano, Quekuto e eu fizemos as pazes e o milagre deu-se! E tem dias que a cada cinco minutos me pergunta exaustivamente "tou a portar bem?" E eu respondo "sim" e volta à carga "tou a portar bem?" Sim e ele continua, interrompendo a lição, as explicações, tudo, interrompendo a minha direcção, a minha linha de planeamento dos trabalhos, tudo, para esgotar a minha paciência com aquela lenga-lenga a que junta intencionalmente um toque de humildade, com o propósito de que eu não me arrependa de dizer "sim" porque, mais tarde, ambos sabemos que será cobrado. Uma vez Quekuto, sempre Quekuto.

 

Todavia, Quekuto já consegue estar onde os outros estão e ser como os outros são, nunca deixando de ser ele mesmo, pelo que com ele a atenção é redobrada, triplicada, enfim... é preciso chegar lá, porque eu sei que ele quer, quer muito ser bom na escola como é na bola. E ele pode, porque outros poderão não ser, mas ele é esperto, inteligente e apanha tudo com imensa facilidade. Já me chateei muito com ele este ano, já foi recado para casa e castigos no apoio. Mas, decididamente, este ano a coisa vai.

 

Há dias, estávamos na leitura e a páginas tantas aparece a palavra "jacaré", que ele leu sem grande dificuldade. Mas como eu sei que muito do vocabulário que eles lêem, desconhecem o significado e para não deixar as crianças na ignorância, prefiro perguntar se sabem o que é. Foi o que fiz. Perguntei-lhe se sabia o que era um jacaré. Ele olhou para mim, abanando a cabeça várias vezes em sinal afirmativo, com aqueles seus olhos grandes, que dizem e exprimem o tumulto que lhe vai na alma de criança. E para ter a certeza de que ele realmente sabia e não só - é necessário que saibam exprimir-se de modo mais fluente -, pedi-lhe que dissesse o que era um jacaré. Ele voltou a olhar para mim com um olhar mais tranquilo, o que significava que sabia o que era. Mas eu estava curiosa, porque para mim um jacaré e um crocodilo são a mesma coisa. Não são, mas confesso a minha ignorância. Por isso queria ver como é que ele se saía com aquela resposta. 


E sem se atrapalhar, olhando nos meus olhos, primeiro vieram todos os tiques nervosos, abrir e fechar de olhos automático, depois começou a surgir o som aos solavancos, a mastigação nervosa e finalmente, por entre a gaguês:

 

- U u  um jacaré é ummm crocodilo.