Quekuto
é uma das crianças da comunidade Guineense, a quem a organização "Coração
Sem Fronteiras" dá apoio escolar, na freguesia do Prior Velho.
Quekuto
é um turbilhão de emoções, todas ao mesmo tempo. No ano passado eu não consegui
trabalhar com ele, nem um pouco. Não nos entendemos de jeito nenhum. Ele
entrava e saía, saía e entrava e voltava a entrar para imediatamente sair.
Ignorava tudo e todos, sempre a refilar, só fazendo o que ele muito bem
queria, com aquele ar reguila que todos lhe conhecem. E no ano passado, a
solicitação das crianças era tão grande e as nossas dificuldades tantas que eu
deixei-o ir na onda dele, sem fazer grandes esforços, porque também não era
possível fazer mais, e milagres muito menos. Pensava eu.
Este
ano, o Quekuto continua a ser o mesmo reguila, irrequieto, um desassossego
completo, mas... há nele, nas mesmas proporções, um lado doce, carinhoso,
sedento por ser mais e melhor, que no ano passado não me foi revelado.
Este ano, Quekuto e eu fizemos as pazes e o milagre deu-se! E tem dias que a
cada cinco minutos me pergunta exaustivamente "tou a portar bem?" E
eu respondo "sim" e volta à carga "tou a portar bem?"
Sim e ele continua, interrompendo a lição, as explicações, tudo, interrompendo
a minha direcção, a minha linha de planeamento dos trabalhos, tudo, para
esgotar a minha paciência com aquela lenga-lenga a que junta intencionalmente
um toque de humildade, com o propósito de que eu não me arrependa de dizer
"sim" porque, mais tarde, ambos sabemos que será
cobrado. Uma vez Quekuto, sempre Quekuto.
Todavia,
Quekuto já consegue estar onde os outros estão e ser como os outros são, nunca
deixando de ser ele mesmo, pelo que com ele a atenção é redobrada, triplicada,
enfim... é preciso chegar lá, porque eu sei que ele quer, quer muito ser bom na
escola como é na bola. E ele pode, porque outros poderão não ser, mas ele
é esperto, inteligente e apanha tudo com imensa facilidade. Já me chateei muito
com ele este ano, já foi recado para casa e castigos no apoio. Mas,
decididamente, este ano a coisa vai.
Há
dias, estávamos na leitura e a páginas tantas aparece a palavra
"jacaré", que ele leu sem grande dificuldade. Mas como eu sei
que muito do vocabulário que eles lêem, desconhecem o significado e para não
deixar as crianças na ignorância, prefiro perguntar se sabem o que é. Foi o que
fiz. Perguntei-lhe se sabia o que era um jacaré. Ele olhou para mim, abanando a
cabeça várias vezes em sinal afirmativo, com aqueles seus olhos grandes, que
dizem e exprimem o tumulto que lhe vai na alma de criança. E para ter a certeza
de que ele realmente sabia e não só - é necessário que saibam exprimir-se
de modo mais fluente -, pedi-lhe que dissesse o que era um jacaré. Ele voltou a
olhar para mim com um olhar mais tranquilo, o que significava que sabia o que
era. Mas eu estava curiosa, porque para mim um jacaré e um crocodilo são a
mesma coisa. Não são, mas confesso a minha ignorância. Por
isso queria ver como é que ele se saía com aquela resposta.
E sem se
atrapalhar, olhando nos meus olhos, primeiro vieram todos os tiques nervosos,
abrir e fechar de olhos automático, depois começou a surgir o som aos solavancos,
a mastigação nervosa e finalmente, por entre a gaguês:
- U u um jacaré é ummm crocodilo.