quinta-feira, 5 de agosto de 2010

O xaile da Sara - 23


A Sara era uma verdadeira hippy quando era criança. Mas uma hippy deste milénio e mais, uma hippy muito requintada e de muito bom gosto. Era um espectáculo ver como ela tão pequena, sabia escolher roupa e conjugar as peças e respectivos acessórios com um apuradíssimo sentido de estética. Super graciosa.

 

Ela teria uns cinco aninhos, quando se usaram uns xailes de rede que se colocavam em cima de qualquer peça de roupa ou à volta da anca ou na cintura, enfim, usavam-se os xailes de toda a maneira e feitio. Eu tinha um, que usava constantemente, com tudo. E um Sábado, saí de manhã com a Sara levando o meu xaile. Ela gostou muito e pediu-me para lhe comprar um. Entrámos numa loja, procurámos e encontrámos um à medida dela. Era vermelho, em rede muito larga, com cadilhos nas pontas. Muito simples. Mas ela adorou e logo tratou de usá-lo.

 

Um dia fomos para a Tróia. Estava um belo dia de calor. Já no caminho de regresso, mal abandonámos a praia, ela deve ter-se lembrado que tinha na bolsa o xaile e diz na sua vozinha doce e baixinho, mas cheia de propriedade: "podem esperar um bocadinho, por favor". Nós virámos-nos para ela e parámos. Ela continuou: "é que estou com um bocadinho de frio" e agachou-se para procurar qualquer coisa no saco. Entretanto, eu pensava com os meus botões, como seria possível ela ter frio se estava um calor de rachar. Teria ficado tempo demais dentro de água? Estaria com resfriado? Enfim, uma leve preocupação passou por mim e estávamos todos parados à espera, quando ela saca de lá o seu encantado xaile de linha todo em rede bem larga e num gesto sobejamente feminino, coloca sobre os ombrinhos, meio descaído, perante os nossos olhares meio admirados, dizendo: "pronto, podemos continuar".

 

Está certo, o xaile precisava de arejar e o "frio" era uma boa razão para o exibir, até porque complementava o seu perfil de hippy.



quarta-feira, 16 de junho de 2010

O preservativo - 22


Estávamos no supermercado, eu e o Henrique. Como habitual, fiz as compras que precisava e dirigi-me à caixa para pagar, pelo que me coloquei numa fila, aguardando a minha vez. De repente, eis que vejo nos expositores da caixa onde estava, entre outras coisas, preservativos. E eu que andava há tanto tempo para comprá-los! Assim como assim, estava divorciada, sozinha, e não é que tivesse muito tempo para isso, nem sequer muitas oportunidades, mas nunca se sabe e o seguro morreu de velho. 

 

Já tinha ido à farmácia várias vezes, sem sucesso, pois não sabia como pedir e ficava sempre intimidada. Faltava-me sempre o à vontade suficiente para ultrapassar o preconceito e agora não tinha que pedir a ninguém, pois estavam mesmo diante dos meus olhos, era só dar um passo, esticar o braço e discretamente, ninguém perceberia nada. Ainda olhei à minha volta a ver se o ambiente estava calmo, a ver se o Henrique estava distraído e não só. Parecia que ninguém estava a olhar para mim. Além do mais, aquilo estava exposto, portanto, era só tirar e ninguém tinha nada com isso. 

 

Olhei bem para eles, ainda um pouco distante, e percebi que não era assim tão fácil, porque havia vários tamanhos, etc... Bom, novamente o impasse. Olhei, olhei, verifiquei mais uma vez se não havia muita assistência e num acto verdadeiramente corajoso, estiquei o braço e com a mão peguei naquela coisa, que coloquei de imediato nas minhas compras. Puf!... Tão simples e tão difícil. E chegou a minha vez na caixa.

 

 O Henrique, que nunca me ajudava naquela tarefa, nesse dia resolveu dar uma ajudinha à mãe. Assim, à medida que a empregada fazia o registo, ele pegava e guardava. Eu, que ainda não estava muito segura da minha compra dos preservativos, fui atrasando, pondo tudo à frente e deixando aquilo para trás, até que chegou a hora. Apetecia-me enterrar-me pelo chão abaixo ao ver aquilo deslizar na passadeira a olhos vistos, até chegar às mãos da empregada. Uma eternidade! Já me tinha arrependido da coragem que tinha tido. Agora não havia nada a fazer, mas finalmente foi liberado e pude respirar de alívio. Foi então que aconteceu um imprevisto.

 

Chegou às mãos do Henrique e o Henrique que nunca me ajudava com as compras, nesse dia resolveu ajudar e depois de todos os meus esforços para não dar nas vistas, pega, e em vez de guardar, observa e com o seu espírito aguçado de investigador e cientista, pergunta: "mãe, o que é isto?" 

 

Eu, que estava distraída a pagar, achando que estava a salvo, respondo sem olhar: "isto o quê?" "Olha": diz ele. Enquanto a rapariga acertava o pagamento, olho e que vejo? Ele, com os preservativos na mão, ingénuo, completamente a leste do paraíso. Rápida e energicamente disse, na minha voz de comando número um: "guarda". Mas ele não obedeceu e não se calava: "oh mãe, mas eu nunca vi isto, a mãe, antes, nunca comprou isto" e eu, furiosa da vida, depois de tanta luta pela discrição, só dizia: "guarda... guarda". Eu já gritava com ele, mas ele, persistente como só ele mesmo, continuava a querer saber o que raio era aquilo e não guardava no saco de maneira nenhuma.

 

E assim, todo o supermercado ficou a saber que eu comprei preservativos.

 

Isto é que é vida! - 21


O Thiago fez um almoço de convívio para a família e pediu para levarem doces e vinhos.

 

A Tathi resolveu então passar numa doçaria e comprar um bolo de chocolate para levar para casa do irmão.

 

Quando chegou à loja saiu do carro e a Tamy foi com ela. Entraram e a Tamy pediu à mãe para lhe comprar um chocolatinho.

 

Enquanto a mãe tratava de escolher o bolo, a Tamy, nos seus quatro aninhos acabados de fazer, sentou-se muito refastelada na cadeira de uma das mesas da doçaria, enquanto se deliciava com o chocolate e gritava para a mãe, que estava no balcão: "Isto é que é vida, né mamãe!"


segunda-feira, 26 de abril de 2010

A torta de cenoura - 20


O João Bernardo estava na pré-adolescência e tinha peso a mais para a sua idade. Precisava de fazer uma dietazinha, o que era difícil, porque gostava muito de comer.

 

Um dia a empregada fez uma torta de cenoura que ele adorou e duma assentada comeu metade da torta.

 

O pai foi o primeiro a chegar a casa e quando viu aquilo ficou indignadíssimo com a quantidade absurda de bolo que ele tinha comido e porque, mais uma vez, não tinha conseguido gerir o seu apetite devorador. Como era de esperar repreendeu-o, dizendo-lhe que não devia ter feito uma coisa daquelas.

 

Ele, muito infeliz, respondeu "oh pai, a torta era de legumes (cenoura), pensei que não fazia mal!"

 

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Cão cadela 19


O Afonso era muito pequeno e estávamos no jardim. Apareceu uma amiga minha que tinha uma cadela e ficámos por ali a conversar, enquanto ele brincava com a cadela. Corria atrás da cadela e a cadela atrás dele e ao mesmo tempo chamava "cão, cão, anda cão"...

 

A mãe chamou-o e disse-lhe que não era um cão, era uma cadela. Ele nunca tinha ouvido aquela palavra. Para ele era tudo a mesma coisa e não ligou, continuou a chamar pelo cão. A Clara insistiu e explicou que aquele cão era uma menina e da mesma maneira que havia meninas e meninos, que isso ele já sabia, com os animais era o mesmo e como aquele cão era uma menina, dizia-se cadela. 

 

Ele escutou o que a mãe lhe disse e logo voltou a brincar com a cadela.

 

Mas então, corria e chamava "cão cadela, cão cadela!?"...

 

terça-feira, 30 de março de 2010

Tutu vítima da Tamy - 18




Estava escrito que o Tutu tinha que levar umas palmadinhas.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Desenhos animados - 17


O Henrique estava sozinho na sala, a ver desenhos animados, de que muito gostava. Já estava ali havia algum tempo, mas estava muito quieto, muito sossegado. Não se manifestava de maneira nenhuma. Várias vezes espreitei e ele estava com toda a atenção, mas calado e sem rir.

 

Então, perguntei-lhe se não estava a achar graça. Ele respondeu que sim, mas o sim não me convenceu. Insisti e disse-lhe que achava que ele não estava a gostar porque não se ria. Resposta dele: "ah, mas estou a rir por dentro!"

 

Entendi(?)



Na gravidez muda a côr - 16


Eu estava sem carro que, por qualquer razão, estava na oficina. O Luis e a Eunice moravam para os nossos lados e deram-nos boleia. A Eunice estava grávida de sete meses do segundo filho. O Henrique ia sentado no banco de trás ao pé de mim e começámos a falar da gravidez dela.

 

Ela era Cabo Verdiana por parte da mãe, portanto, não tinha a pele completamente branca. O tom de pele era de Cabo Verdiana. O Henrique, olhava para ela e para a barriga, com grande insistência. Ele deveria ter uns seis anos nessa altura e claro, já tinha visto mulheres grávidas, mas nunca tinha dado tanta atenção e talvez nunca tivesse estado tão perto. Quis tocar na barriga dela e o ar dele era de admiração. O facto é que havia qualquer coisa que o intrigava. Via-se na fisionomia dele. Mas não me passava pela cabeça o que poderia ser.

 

No dia seguinte, estávamo-nos a vestir e a preparar para começar um novo dia, quando ele me fez a seguinte pergunta: "quando a mãe estava grávida de mim, a mãe mudou de cor?"

 

Parei para pensar na pergunta, que aparentemente não fazia sentido. Além disso, estava habituada à sensatez e à coerência dele em tudo. Era uma criança precoce e tinha um entendimento muito avançado. Segundo a médica, havia um desfasamento de dois anos para mais o que, com o passar dos anos, deixaria de ser significativo e eu entendia isso perfeitamente. Todas as perguntas que ele nos fazia tinham razão de ser, tinham lógica, eram ponderadas. Mas aquilo saiu assim de um jeito que me deixou desconsertada e até meio irritada, por isso, respondi-lhe um pouco secamente, que não entendia a pergunta. Disse-lhe que ele não costumava fazer perguntas tontas, que as pessoas não mudam de cor, são sempre como são e quis que ele explicasse porque fazia semelhante pergunta. Ele, coitado, não se desmanchou. Provavelmente ele próprio achava estranho, mas naquela cabecinha havia uma questão pertinente e continuou: "é que, no anúncio, diz que muda a cor!"

 

Ouvi o que ele disse e fiquei novamente desconsertada. A coisa não se estava a compor, achava eu. No anúncio diz que muda a côr? Perguntei então: qual anúncio? Respondeu, com ar sério e humilde "da televisão...". Da televisão? Pensei - publicidade. Como eu continuava parada a olhar para ele, enquanto procurava equacionar os dados, ele continuou: "sim, no anúncio diz - se estiveres grávida muda a côr".... 

 

Mentalmente revi o anúncio do teste da gravidez, onde a menina dizia realmente: "se estiveres grávida muda a côr" - a côr da palheta do teste. Voltei atrás, à primeira pergunta dele, que relacionei com a seguinte e começou a fazer-se luz.

 

Ele associou a mudança da côr, à côr da pele, pelo facto de ela ser Cabo Verdiana e não à côr do teste, cujo pormenor ele desconhecia. Ele só sabia que mudava a côr e a Eunice realmente tinha uma côr diferente!


quinta-feira, 25 de março de 2010

Na TV - 15


Era Verão e estávamos de férias nos Açores. Como habituamente, passávamos com frequência na Delegação da RTP para ver os colegas e pôr em dia as novidades.

 

O Estúdio estava vazio e fomos para lá conversar, para não incomodar quem estava a trabalhar. Tinha acabado o Jornal da Tarde e em cima da mesa onde ficava o pivot estava uma folha de alinhamento de emissão ou qualquer coisa do tipo. O Henrique tinha nessa altura quatro anos e estava divertido a ver tudo.

 

A páginas tantas resolveu sentar-se na cadeira do pivot. O monitor ainda estava ligado à central, mas apenas em circuito interno. Viu-se no écran e achou graça. Começou a fingir que era o jornalista e gostou da brincadeira de se ver no televisor.

 

Para ver a reacção dele, o pai lembrou-se de lhe dizer que as pessoas em casa estavam a vê-lo. Ele ficou apavorado mas, se estavam a vê-lo, não podia dar o flanco. Continuou a olhar para o écran e entre dentes perguntou se era mesmo verdade que estava a aparecer em casa das pessoas. O pai, com ar sério, respondeu que sim, pedindo-lhe para ter cuidado com o que dizia e fazia. O coitado ficou aterrado, mas lá se aguentou como pôde, mas tinha que sair de cena, fosse como fosse.

 

E sem se fazer esperar, não quis saber de mais nada. Pegou na folha do alinhamento que estava em cima da mesa e devagarinho foi escondendo o rosto por trás da folha de papel, à medida que ia descendo e escorregando pela cadeira abaixo, até desaparecer por baixo da secretária. Estava a salvo.

 

Aparecer em casa de toda a gente, isso é que não!  



quarta-feira, 24 de março de 2010

Quem mora aqui? - 14


A Tamy era pequerrucha, estava a começar a falar, naquela fase em que os adultos se encantam com cada palavrinha nova que surge no vocabulário de uma criança e ficava com a babá, enquanto o Ilan e a Tathi iam trabalhar.

 

A Verónica perguntava à Tamy: "quem mora aqui?" A Tamy respondia: "o papai". A Verónica continuava: "e mais?" Ela respondia: "a mamãe". E a Verónica: "e mais", a Tamy: "o Tutu"A outra continuava pedindo mais e a Tamy respondia: "a Hanna (cadela)" e mais: "você" e mais: "eu". A Verónica estava feliz com as respostas da Tamy.

 

Algum tempo depois, a Verónica encantada com a aprendizagem da Tamy, voltava à carga: "Tamy, quem mora aqui?" A Tamy, coitadinha, feita um papagaio, respondia. A outra continuava e a Tamy, pacificamente, ia respondendo por aí adiante, até a família estar de novo completa. E este longo questionário foi repetido várias vezes ao longo de um dia.

 

Já estava de saída, quando resolveu certificar-se de que a lição estava mesmo sabida e já na frente da Tathi, que tinha acabado de chegar, diz: "Tamy, fala para a mamãe, fala querida, quem mora aqui?" A Tamy já farta daquilo, quando a outra faz a repetidíssima pergunta do quem mora aqui, resolveu pôr um basta naquela história, que era como que se lhe estivessem a chamar estúpida e responde com toda a firmeza e segura de si: "é todo o mundo"...



quarta-feira, 17 de março de 2010

A Marta - 13


A São e o Aníbal estavam de férias em Lisboa e como de costume vieram ter connosco para irmos jantar. A São passou a tarde na televisão (RTP) com a Marta, que ainda não tinha dois anos. Tendo terminado o meu horário fui buscar o Henrique à ama.

 

A Marta era uma menina prodígio. Esperta, viva, alegre, cantarolava tudo o que ouvia, era muito divertida.

 

Estávamos sentadas nos sofás da área de lazer do Centro de Emissão, onde as crianças podiam estar mais à vontade. Às tantas, a Marta, que estava sentada no chão, resolveu fazer chichi ali mesmo, num sítio onde toda a gente passava. Não contente com isso, desatou a chapinhar com as mãos e os pés. Chamei a São, mas ela estava muito bem a conversar e não esteve para se incomodar. Só ria. Fiquei pasmada com a passividade dela e pensei, quem me dera ser assim. O Henrique que tinha então quatro para cinco anos, ria da javardice que a outra fazia. Finalmente, a São levantou-se e levou a Marta à casa de banho, que era mesmo em frente ao lugar onde estávamos. Voltou com a Marta já lavada e enxuta. Assim que saíram, entrou o Henrique.  A Marta viu o Henrique entrar e foi atrás dele. Pensei: "o que é que aqueles dois vão fazer para a casa de banho?!"...

 

Passaram alguns minutos, o tempo suficiente para saírem e nada. Disse à São que os dois estavam enfiados na casa de banho, mas ela riu e não se importou, achando que não havia problema.

 

Continuámos a nossa animada conversa e os dois nada de saírem. Eu não conseguia deixar de pensar no que é que os dois estariam a tramar lá dentro. Imaginava-os a chafurdar na água e a molharem-se um ao outro. Estava super curiosa para ver o que é que ia sair dali. Mas eles nada de saírem, nem barulho, nem vozes. Silêncio completo.

 

Decididamente, algo de interessante se passava e eu precisava intervir. Entrei. Na primeira casa de banho, nada. Na segunda, os dois lá enfiados. O Henrique de pé, com as calças para baixo, a fazer chichi, com uma pontaria espectacular para dentro da sanita, fazendo um arco enorme. A Marta do lado direito da sanita, com o dedinho indicador a meio do arco, interrompendo o chichi, que por sua vez fazia um repuxo, espalhando-se por todo o lado. Ambos ignoraram completamente a minha presença, compenetrados e deliciados com a brincadeira.

 

Eu disse: "Henrique, não vez que ela é mais pequena que tu, não a deixes pôr o dedo no teu chichi". Resposta dele, tranquilo, com ar de gozo e dono e senhor da situação: "ela põe porque quer".

 

terça-feira, 16 de março de 2010

Dédé e Kamilla - 12


Paulinho tinha nove anos e Daniel sete, mais ou menos, quando a irmãzinha apareceu. Com dois rapazes, uma menina foi uma alegria e tanto, mimada por toda a família e pelos dois que, sem dúvida alguma, gostavam muito dela. Era um brinquedo, mas às vezes tinham que se confrontar com situações de atenção mais direccionada para ela e menos para eles e nestes casos, normalmente, o mais pequeno ressente-se.

 

Um dia, Dédé (Daniel), achando que ninguém estava a vê-lo, tratou de resolver as coisas ao seu jeito.

 

Pé ante pé, esgueirou-se para a porta do quarto da irmã, com poucas semanas de vida dormindo o sono dos justos e não vendo ninguém, entrou, foi junto do bercinho e deixou muito bem claro o seu recado:

 

"Kamilla, você tá me ouvindo? Eu gosto muito de você. Adoro você. Mais você é adoptada, hem?!"

 

sexta-feira, 12 de março de 2010

A Sara - 11


A Sara é a minha sobrinha caçula, que tem agora catorze aninhos e é bailarina. Toda ela é leveza e expressa arte dos pés à cabeça. Super criativa, tem uma personalidade meio etérea, contudo, sabe muito bem o que quer. É discreta, mas não sóbria, como um raio de luz, que irradia uma angélica claridade por toda a parte onde está.

 

Quando ela era pequenina, ainda tinha fraldas e teria à volta de dois, três anos, aconteceu uma coisa interessante. Ela estava na sala a brincar sozinha. A Fátima estava na cozinha a preparar o jantar, que sempre deixava pronto antes de chegar a hora de se ir embora. A Sara ainda falava muito pouco e não gostava de falar, como ainda hoje, expressando-se apenas com o olhar e o rosto. Só fala se tiver alguma coisa para contar, tirando isso, não fala. O que sempre me fascinou é que ela o faz de um jeito gracioso, com imensa sensibilidade. Nunca ninguém ficou com dúvidas, independentemente da falta de palavras dela. Está tudo devidamente esclarecido e perfeitamente impresso no seu semblante.

 

E perdida que estava nas suas brincadeiras, como era suposto, a certa altura levanta-se e vai ter com a Fátima. Fica de volta dela e não a deixa, puxando-lhe a roupa, o avental, e chama a atenção dela. A Fátima pergunta-lhe o que é que ela quer e ela mostra um descontentamento, um incómodo e continua a reclamar a atenção dela. Ela acha aquilo aborrecido e pergunta o que é que a Sara quer, o que foi, explicando-lhe que não pode ir porque está ocupada. Ela volta para a sala, mas minutos depois a cena repete-se e a Fátima não sabe o que lhe há-de fazer, mas ela não a deixa e continua a chamá-la, insistentemente.

 

A Fátima não tem tempo, mas com tanta insistência acaba por ceder. Vai com ela até onde ela quer e pergunta-lhe mais uma vez o que é que se passa. Ela diz que está barulho em baixo. A Fátima diz que não está barulho, que não faz mal e pede-lhe para continuar a brincar porque precisa de ir trabalhar. Ela chora e diz que tem medo. A Fátima não percebe o que se está a passar e a Sara insiste e explica-se como pode. Estamos a falar de uma criança quase bebé, mas ela consegue explicar que ouve barulho na casa de baixo e que são ladrões.

 

A outra diz que não, que não há ladrões, para ela ficar tranquila. Senta-a no colo, mas a Sara chora e está muito assustada. A Fátima fica um bocado com ela ao colo para a acalmar e as duas ficam caladas por um instante. É aí que a Fátima começa a ouvir o que a Sara já estava a ouvir há um tempo e que a estava assustando. A criança falou dos ladrões e a Fátima começou então a entender, porque começou a ouvir os mesmos ruídos e pensou que, de facto, era estranho, porque àquela hora não era costume estar ninguém em casa. Além disso, eram vozes de homens e parecia que abriam gavetas, portas, por aí.

 

Agora era ela que estava assustada. Não havia muita gente no prédio e ela ficou muito preocupada e sem saber o que fazer. Mas tinha que fazer alguma coisa, não fossem eles subir um andar e ela estava sozinha com a criança, o que era uma enorme responsabilidade. O que parecia uma tolice de criança de fraldas tornou-se repentinamente num pesadelo. Então ela ligou para a polícia e explicou que estava em casa dos patrões com uma criança pequena e exposta a uma cena de vandalismo. A Polícia seguiu imediatamente para lá e apanhou os dois homens em flagrante.

 

Durante uns dias o pai proibiu quem quer que fosse de falar naquele assunto, porque sentia a Sara fragilizada, no que fez muito bem. Porém, a Sara, nos dias que se seguiram, ganhava bonecas novas dos vizinhos de baixo, que assim exprimiam a sua gratidão por a Sara, quase bebé, os ter salvo de um enorme furto de joias.

 

Guardo esta história com muito carinho, mas sobretudo com enorme espanto, porque acho extraordinário o comportamento da Sara. Não acho normal nem vulgar, uma criança tão pequena ter semelhante atitude. Sempre achei que ela é dotada de uma forte percepção extra sensorial, caso contrário não se teria apercebido de nada. Tinha ficado no mundo dela, inocente e pueril.

 

A Sara é uma flor matizada de muitos tons e variadíssimas fragrâncias raras e delicadas que eu gostaria que nunca se perdessem.

 

terça-feira, 2 de março de 2010

Vamu dormi - 10


 

S. Paulo, Brasil, 19.10.09


 

A Tamy e o Tutu preparam-se para dormir (clicar sobre o texto sublinhado)

 

E assim a Tamy ensina o Tutu a dormir.

 

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Os cremes da mãe - 9


Todas as manhãs e todas as noites eu tinha e tenho o hábito de cuidar devidamente da minha pele. Desde pequeno, o Henrique habituou-se a ver este ritual.

 

Um dia perguntou: "o que é isso que a mãe põe na cara todos os dias"? Respondi que era creme. Ele perguntou: "creme para quê?". Tranquilamente, respondi-lhe que era para não ficar velha. Ele, sem se fazer esperar, disse logo: "ah, então o pai também tem que pôr!" E ficou a olhar para mim, à espera... ficámos a olhar um para o outro e eu tive que lhe dizer: "pois é, mas sabes, os homens não têm muita paciência para estas coisas!"

 

Mas... ele não queria o pai velho, só isso.




O Presidente da República - 8


Era o início do ano do calendário solar. Começavam as confusões por causa dos aumentos salariais. Os jornais e os telejornais abriam sempre com especulações de aumentos, greves, sindicatos e patronato, tudo em pé de guerra.

 

Estávamos a jantar e ao mesmo tempo a tv estava ligada, para irmos ouvindo as notícias. O jornalista ia relatando os números e percentagens que correspondiam às diversas categorias profissionais para os públicos, privados, etc. Às tantas, o jornalista começou a falar dos aumentos para os representantes do Governo, deputados, primeiro-ministro, até que chegou ao Presidente da República e dizia, o aumento para este ano para o Presidente da República é de X.

 

O Henrique vira-se para mim e pergunta espantadíssimo "oh mãe, o Presidente da República também trabalha?!"

 

(A pergunta não era também "ganha" era também "trabalha").



A anedota - 7


O Henrique ouvia-nos muitas vezes contar anedotas. Quando nos reuníamos com os amigos era uma maneira de extravasar, convivendo com uma certa dose de boa disposição. Nesses convívios as crianças ficavam por ali, na vida deles, entretidos uns com os outros.

 

Um dia, sem mais nem menos, ele disse-me: "mãe... a mãe pode-me contar uma anedota?" E eu pensei, uma anedota? Na noite anterior tínhamos estado a contar anedotas. Era isso, queria que lhe contasse uma, só que todas as anedotas eram muito complicadas para ele entender. Mas ele queria que lhe contasse uma anedota. Comecei a pensar no que é que lhe ia contar para ele perceber. Não me lembrava de nada e disse-lhe que era tudo muito complicado e ele não ia entender. Mas ele respondeu muito convicto: "não, a mãe conta, conta que eu percebo". Estou tramada, pensei, enquanto me veio à ideia uma mais leve, que ainda assim era complexa para ele, mas com a insistência não tive alternativa e comecei a contar devagar, para o caso de ele não entender alguma coisa e querer perguntar, como sempre fazia contudo.

 

Ia assim, contando devagarinho e duas vezes parei e perguntei se ele estava a entender, porque o semblante era sério, não transparecia nada. Mas ele dizia que sim, para eu continuar. Às tantas tive que interromper por causa de qualquer coisa que estava a fazer e ele perguntou: "já acabou?" Respondi que não e ele ficou à espera. Continuei contando o resto e parei. Ele esperou uns escassos segundos e vendo que eu tinha acabado de falar perguntou: "a mãe já acabou?" Respondi que sim.

 

Então ele olhou para mim e começou a rir, mas um riso de dever, ou seja, tinha acabado a anedota e ele sabia que estava na altura de rir. Olhava para mim e ria ah, ah, ah, mas um rir tão esforçado! Missão cumprida com aquele riso. Estava a agir como os adultos. Era isso que importava.

 

Quem riu depois com gosto fui eu, mas não ao pé dele. E pronto, foi assim a primeira anedota do Henrique.

 

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

A vida são dois dias - 6


Quando alguma coisa me chateava, eu tinha o costume de dizer "a vida são dois dias e o Carnaval são três". Meu filho Henrique, com cinco anos de idade, ouvia isto com frequência, quando eu desabafava em voz alta, comigo mesma.

 

Ele sempre foi muito matemático, muito preciso. Não gostava de dúvidas. O preto no branco e o branco no preto e quando tinha dúvidas perguntava.

 

Um dia, uma vez mais, saiu-me esta expressão "a vida são dois dias... ". Com o seu ar inocente, mas de expoente máximo, achando que tinha que haver uma boa explicação para que a sua matemática fizesse sentido, intrigadíssimo, perguntou: 


- "Oh mãe, é isso que eu não percebo?" - O quê(?), perguntei eu. Resposta dele: -"Se a vida são dois dias, como é que o Carnaval são três?!..."

 


 


sábado, 20 de fevereiro de 2010

O cartão multibanco - 5


Quando o Henrique era criança, as despesas eram muitas e eu tinha que gerir muito bem as minhas finanças. Quando se aproximava o fim do mês, guardava coisas extras para comprar no mês seguinte, óbvio. Mas às vezes queria muito isto ou aquilo, qualquer coisa... e saíam em voz alta aqueles desabafos que nos escapam naturalmente, que chatice, já não tenho dinheiro, tenho que esperar... etc.

 

Um dia eu estava com esse problema por um motivo que nem me lembro já, comentando em voz alta. O Henrique que era pequeno e que eu pensava que nunca ouvia e que nunca entendia, deve ter ficado incomodado e diz-me assim: "oh mãe, mãe! A mãe tem aí aquele cartão?" Qual cartão(?), perguntei. "Aquele que a mãe tem para ir àquelas máquinas buscar dinheiro?"...

 

Entendi. Ele não percebia porque é que eu me lamentava, se havia caixas multibanco e eu até tinha um cartão que me resolvia o problema sempre que o dinheiro na carteira acabava?!

 

Simples.


quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Vamos à praia - 4


Era um Domingo de Inverno e chovia copiosamente. A Clara queria levar o Afonso para qualquer sítio para apanhar ar e brincar, mas o tempo estava francamente mau. A cada dez minutos lamentáva-se, dizendo: "que chatice, o tempo está mau, não posso sair com ele". Além disso, o pai queria trabalhar e dava-lhe jeito ficar sozinho em casa. E o Afonso estava por ali entretido no chão da sala.

 

Pouco a pouco a Clara ia à janela e resmungava. Estava mesmo chateada, porque a chuva não parava e ela só pensava em levar o Afonso ao jardim. Às tantas, ele levanta-se do chão, salta para cima do sofá e em pé com os bracitos no ar, grita: "Já sei, mãe, vamos à praia!"

 

Mas disse aquilo com um ar vitorioso, de quem tinha tido uma ideia genial. De facto, era, mas era uma ideia genial e inocente, incompatível com a realidade. Começámos a rir, a rir com gosto, porque para ele a praia era um lugar que estava lá naquele sítio e que tinha sempre sol, era certo. Para ele não havia dúvidas disso. E nós ríamos enquanto ele repetia: "sim, à praia, na praia tá sol!?" Como quem diz "não percebem, são estúpidas!"

 

O Miguel - 3


A minha irmã e eu não somos muito parecidas, contudo, existem semelhanças que para uns são muito evidentes e para outros não.

 

O Miguel nasceu e assim que começou a ser "gente" e a emitir sons, começaram a ensinar-lhe os nomes da família. Ele aprendia e reconhecia todos com muita facilidade, mas os nossos nomes, trocava sempre. Quando me via, dizia que era a Guida e quando via a Guida dizia que era a Lili. Por mais que o emendassem, trocava sempre. Era quase um desafio, porque estávamos sempre à espera que acertasse, mas isso não acontecia, nem ninguém nunca pensou no porquê daquela troca que afinal tinha a sua razão de ser.

 

No dia do octogésimo aniversário do avô, que reuniu a família toda, ele viu as duas juntas pela primeira vez. Perguntaram-lhe os nossos nomes e ele olhava para uma e olhava para outra, primeiro com um ar intrigado, depois a expressão descontraiu e começou a rir e ria, ria, ria muito...

 

É que ele finalmente percebeu que haviam duas e entendeu a sua confusão. De facto, ele nunca nos tinha visto juntas, porque vivemos longe uma da outra e só nos reunimos todos em ocasiões especiais. Nesse dia ele percebeu a confusão e nós também, claro. A expressão do seu riso traduzia exactamente o engano e ria como que a gozar com ele mesmo, como se nos dissesse "afinal eram duas, queriam-me enganar!"

 

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Mãiê, você engoliu eu? - 2


O Thiago e a Tathiana eram muito pequenos. Estavam os dois a brincar, mas pouco a pouco brigavam um com o outro. Os dois sempre tiveram muita energia, só que naquele dia deu para o torto. A mãe dizia para sossegarem, mas eles não paravam de fazer traquinices. Ela dizia que era ele, ele dizia que era ela. É assim mesmo, toda a criança tem destes momentos.

 

De repente, encontrou uma foto onde estavam todos menos ele, porque a minha irmã estava grávida dele. Olhou com muita atenção e perguntou, com algum espanto: "Mãiê, porque eu não estou nesta foto? A Tathi está, onde eu estava que não estou me vendo, hem?"

 

A Mãe simplesmente respondeu que ele ainda não tinha nascido, estava na barriga dela. Na sua inocência, ele perguntou "na sua barriga? E como eu fui aí parar? ... Você engoliu eu?"

 

Com a mãe atrás dele e sem saber muito bem o que responder, ele continua:

" Ah, não! Não mi diga que vai me engolir outra vez?!...

 

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Mãe, eu queria nascer - 1


Um dia estávamos em casa com uns amigos. Os homens estavam no escritório às voltas com a informática e as mulheres na sala com as crianças.

 

O Henrique era o mais pequeno e teria pouco mais de dois anos. A conversa baseava-se nos filhos, nascimentos e abortos. Ninguém diria que as crianças estavam a ouvir, de tão entretidas nas suas brincadeiras. Pelo menos assim parecia. Falou-se destes assuntos uma tarde inteira, sobretudo no problema do aborto. Mulheres que faziam abortos com frequência, consequências físicas e emocionais e cada uma se exprimia como que o sentindo na própria pele. Assim falávamos, completamente alheias às crianças, achando que eles nem entendiam a conversa.

 

Ao fim da tarde, o pessoal bateu em retirada e o Henrique continuou sozinho com as suas construções de legos. O pai foi para o escritório dar continuidade aos seus trabalhos e eu fiquei na sala. De repente, o Henrique levanta-se e dirige-se a mim. Põe uma mão sobre o meu joelho, fixa-me nos olhos e com a outra mão, tocava-ma, como que a chamar a minha atenção para eu ouvir o que ele tinha para me dizer e depois de estar convicto de que eu lhe estava a dar toda a atenção que ele reclamava, disse: "Mãe, eu queria nascer!"

 

Caí na realidade. O meu filho lindo e amado tinha estado a absorver tudo aquilo e antes que eu ficasse com alguma dúvida de o ter posto neste mundo, já que se tinha apercebido de que nem todas as mães pareciam estar certas de quererem ou não os seus próprios filhos, ele reafirmava a soberana decisão da sua intervenção no processo de reencarnação, de vir a este mundo através da minha pessoa, escolhida para sua mãe nesta vida.

 

Achei aquilo uma delícia. De certa forma era uma declaração de amor. Amor para com ele, para com os seus progenitores, para com "Deus" ou a vida. Agora não restavam dúvidas que nunca existiram, claro. Além disso, adivinhava-se também uma personalidade prematura muito forte. A sua certeza de estar aqui, pressupunha uma missão a cumprir. "Mãe, eu queria nascer"... (eu tenho motivos muito fortes para estar aqui!).

 

Por momentos fiquei sem palavras. Mas foi lindo.

 

Pergunto-me, quantas crianças não dirão ou pensarão da mesma forma. Algumas denotam uma vontade tão forte da sua presença neste mundo, quer pelas suas atitudes enérgicas, que muitas vezes os adultos não entendem, quer pela resistência à sobrevivência, que se revelam verdadeiros milagres, quantas não terão o mesmo pensamento - eu quero estar aqui, custe o que custar. Eu preciso de estar aqui!



domingo, 14 de fevereiro de 2010

Baby lonia





Babilónia, As Portas de Deus.

 

 

As crianças são as Portas que Deus nos está constantemente a abrir, mas que depois são atiradas para o mundo, um mundo que nem sempre está à altura de as receber e as contamina e transforma.

 

As crianças são o melhor da vida. Elas constroem o futuro, elas têm o poder de mudar o mundo. Mas a responsabilidade é nossa e temos de dar-lhes as ferramentas necessárias. Temos que reviver o mundo delas que já foi o nosso, um dia.

 

Este blog é inteiramente dedicado às crianças. Especialmente dedicado ao meu filho, mas não só, a todas as crianças no mundo inteiro, sem excepção.

 

Para elas, que a Babilónia de hoje se transforme nas verdadeiras Portas de Deus e lhes abra a passagem para o mundo, um mundo novo, melhor e mais justo.