A
Sara é a minha sobrinha caçula, que tem agora catorze aninhos e é bailarina.
Toda ela é leveza e expressa arte dos pés à cabeça. Super criativa, tem
uma personalidade meio etérea, contudo, sabe muito bem o que quer. É discreta,
mas não sóbria, como um raio de luz, que irradia uma
angélica claridade por toda a parte onde está.
Quando
ela era pequenina, ainda tinha fraldas e teria à volta de dois, três anos,
aconteceu uma coisa interessante. Ela estava na sala a brincar sozinha. A
Fátima estava na cozinha a preparar o jantar, que sempre deixava pronto antes
de chegar a hora de se ir embora. A Sara ainda falava muito pouco e não gostava
de falar, como ainda hoje, expressando-se apenas com o olhar e o rosto. Só
fala se tiver alguma coisa para contar, tirando isso, não fala. O que sempre me
fascinou é que ela o faz de um jeito gracioso, com imensa sensibilidade. Nunca
ninguém ficou com dúvidas, independentemente da falta de palavras dela. Está
tudo devidamente esclarecido e perfeitamente impresso no seu
semblante.
E
perdida que estava nas suas brincadeiras, como era suposto, a certa altura
levanta-se e vai ter com a Fátima. Fica de volta dela e não a deixa,
puxando-lhe a roupa, o avental, e chama a atenção dela. A Fátima pergunta-lhe o
que é que ela quer e ela mostra um descontentamento, um incómodo e
continua a reclamar a atenção dela. Ela acha aquilo aborrecido e pergunta o que
é que a Sara quer, o que foi, explicando-lhe que não pode ir
porque está ocupada. Ela volta para a sala, mas minutos depois a cena
repete-se e a Fátima não sabe o que lhe há-de fazer, mas ela não
a deixa e continua a chamá-la, insistentemente.
A
Fátima não tem tempo, mas com tanta insistência acaba por ceder. Vai com
ela até onde ela quer e pergunta-lhe mais uma vez o que é que se passa. Ela diz
que está barulho em baixo. A Fátima diz que não está barulho, que não faz mal e
pede-lhe para continuar a brincar porque precisa de ir trabalhar. Ela chora e
diz que tem medo. A Fátima não percebe o que se está a passar e a Sara insiste
e explica-se como pode. Estamos a falar de uma criança quase bebé, mas ela
consegue explicar que ouve barulho na casa de baixo e que são ladrões.
A
outra diz que não, que não há ladrões, para ela ficar tranquila. Senta-a no
colo, mas a Sara chora e está muito assustada. A Fátima fica um bocado com ela
ao colo para a acalmar e as duas ficam caladas por um instante. É aí que a
Fátima começa a ouvir o que a Sara já estava a ouvir há um tempo e que a estava
assustando. A criança falou dos ladrões e a Fátima começou então a entender,
porque começou a ouvir os mesmos ruídos e pensou que, de facto, era estranho,
porque àquela hora não era costume estar ninguém em casa. Além disso, eram
vozes de homens e parecia que abriam gavetas, portas, por aí.
Agora
era ela que estava assustada. Não havia muita gente no prédio e ela ficou muito
preocupada e sem saber o que fazer. Mas tinha que fazer alguma coisa, não
fossem eles subir um andar e ela estava sozinha com a criança, o que era
uma enorme responsabilidade. O que parecia uma tolice de criança de fraldas
tornou-se repentinamente num pesadelo. Então ela ligou para a polícia e
explicou que estava em casa dos patrões com uma criança pequena e exposta a uma
cena de vandalismo. A Polícia seguiu imediatamente para lá e apanhou os dois
homens em flagrante.
Durante
uns dias o pai proibiu quem quer que fosse de falar naquele assunto, porque
sentia a Sara fragilizada, no que fez muito bem. Porém, a Sara, nos dias que se
seguiram, ganhava bonecas novas dos vizinhos de baixo, que assim exprimiam a
sua gratidão por a Sara, quase bebé, os ter salvo de um enorme furto de joias.
Guardo
esta história com muito carinho, mas sobretudo com enorme espanto, porque
acho extraordinário o comportamento da Sara. Não acho normal nem vulgar, uma
criança tão pequena ter semelhante atitude. Sempre achei que ela é dotada de
uma forte percepção extra sensorial, caso contrário não se teria apercebido de
nada. Tinha ficado no mundo dela, inocente e pueril.
A Sara é uma flor matizada de muitos tons e variadíssimas
fragrâncias raras e delicadas que eu gostaria que nunca se perdessem.