sexta-feira, 12 de março de 2010

A Sara - 11


A Sara é a minha sobrinha caçula, que tem agora catorze aninhos e é bailarina. Toda ela é leveza e expressa arte dos pés à cabeça. Super criativa, tem uma personalidade meio etérea, contudo, sabe muito bem o que quer. É discreta, mas não sóbria, como um raio de luz, que irradia uma angélica claridade por toda a parte onde está.

 

Quando ela era pequenina, ainda tinha fraldas e teria à volta de dois, três anos, aconteceu uma coisa interessante. Ela estava na sala a brincar sozinha. A Fátima estava na cozinha a preparar o jantar, que sempre deixava pronto antes de chegar a hora de se ir embora. A Sara ainda falava muito pouco e não gostava de falar, como ainda hoje, expressando-se apenas com o olhar e o rosto. Só fala se tiver alguma coisa para contar, tirando isso, não fala. O que sempre me fascinou é que ela o faz de um jeito gracioso, com imensa sensibilidade. Nunca ninguém ficou com dúvidas, independentemente da falta de palavras dela. Está tudo devidamente esclarecido e perfeitamente impresso no seu semblante.

 

E perdida que estava nas suas brincadeiras, como era suposto, a certa altura levanta-se e vai ter com a Fátima. Fica de volta dela e não a deixa, puxando-lhe a roupa, o avental, e chama a atenção dela. A Fátima pergunta-lhe o que é que ela quer e ela mostra um descontentamento, um incómodo e continua a reclamar a atenção dela. Ela acha aquilo aborrecido e pergunta o que é que a Sara quer, o que foi, explicando-lhe que não pode ir porque está ocupada. Ela volta para a sala, mas minutos depois a cena repete-se e a Fátima não sabe o que lhe há-de fazer, mas ela não a deixa e continua a chamá-la, insistentemente.

 

A Fátima não tem tempo, mas com tanta insistência acaba por ceder. Vai com ela até onde ela quer e pergunta-lhe mais uma vez o que é que se passa. Ela diz que está barulho em baixo. A Fátima diz que não está barulho, que não faz mal e pede-lhe para continuar a brincar porque precisa de ir trabalhar. Ela chora e diz que tem medo. A Fátima não percebe o que se está a passar e a Sara insiste e explica-se como pode. Estamos a falar de uma criança quase bebé, mas ela consegue explicar que ouve barulho na casa de baixo e que são ladrões.

 

A outra diz que não, que não há ladrões, para ela ficar tranquila. Senta-a no colo, mas a Sara chora e está muito assustada. A Fátima fica um bocado com ela ao colo para a acalmar e as duas ficam caladas por um instante. É aí que a Fátima começa a ouvir o que a Sara já estava a ouvir há um tempo e que a estava assustando. A criança falou dos ladrões e a Fátima começou então a entender, porque começou a ouvir os mesmos ruídos e pensou que, de facto, era estranho, porque àquela hora não era costume estar ninguém em casa. Além disso, eram vozes de homens e parecia que abriam gavetas, portas, por aí.

 

Agora era ela que estava assustada. Não havia muita gente no prédio e ela ficou muito preocupada e sem saber o que fazer. Mas tinha que fazer alguma coisa, não fossem eles subir um andar e ela estava sozinha com a criança, o que era uma enorme responsabilidade. O que parecia uma tolice de criança de fraldas tornou-se repentinamente num pesadelo. Então ela ligou para a polícia e explicou que estava em casa dos patrões com uma criança pequena e exposta a uma cena de vandalismo. A Polícia seguiu imediatamente para lá e apanhou os dois homens em flagrante.

 

Durante uns dias o pai proibiu quem quer que fosse de falar naquele assunto, porque sentia a Sara fragilizada, no que fez muito bem. Porém, a Sara, nos dias que se seguiram, ganhava bonecas novas dos vizinhos de baixo, que assim exprimiam a sua gratidão por a Sara, quase bebé, os ter salvo de um enorme furto de joias.

 

Guardo esta história com muito carinho, mas sobretudo com enorme espanto, porque acho extraordinário o comportamento da Sara. Não acho normal nem vulgar, uma criança tão pequena ter semelhante atitude. Sempre achei que ela é dotada de uma forte percepção extra sensorial, caso contrário não se teria apercebido de nada. Tinha ficado no mundo dela, inocente e pueril.

 

A Sara é uma flor matizada de muitos tons e variadíssimas fragrâncias raras e delicadas que eu gostaria que nunca se perdessem.

 

2 comentários:

  1. Lili, adorei a descrição da Sara. De facto, ela é assim como a descreve, doce, expressiva, e algo misteriosa. A história em si é incrível! Parabéns pelo blog.

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  2. Lili, também gostei em especial deste posting. é bem interessante. Bem feito aos ladrões. Eu não sabia desta história, mas vindo da minha prima Sarinha, ainda em tenra idade, tudo é possível, a gajinha é, como dizem os Brasileiros... "uma fera".
    Bjos

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